sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Operação Vindima

Não nutro especial admiração pela Leonor pinhão, mas habituei-me ao longo dos anos a ler as suas crónicas normalmente azedas. Tem um estilo muito próprio que nem sempre me agrada, mas ontem, como noutras ocasiões, encheu-me as medidas. A fina ironia presente neste texto é excelente. Aqui fica, excepcionalmente, o texto de Leonor Pinhão:

“Pelo fim de Setembro, as vindimas constituem uma das mais importantes actividades agrícolas do país”.
in ‘almanaque Borda d´Água’

“Cacho aqui, cacho ali, untava em cada vindima uvas suficientes para atestar dois lagares”.
João de Araújo Correia, ‘Terra Ingrata’

“Por esta altura o Douro é um frenesi de vindima”.
Eça de Queiroz, ‘A cidade e as serras’

“Lá no Norte, se alguém perguntar ‘oh filho da puta, tudo bem?’ ninguém vai achar que está a ofender a mãe. Se aparecer alguém que se tenha ofendido com isso…
Pinto da Costa, declamador de poesia


«SOBE o pano. Uma mesa comprida no centro de uma sala. Uma meia dúzia de personagens em mangas-de-alpaca exibe grande agitação. Há alegria no ar. A cena passa-se algures lá no Norte, naquela região demarcada onde se alguém perguntar ‘oh filho da puta, tudo bem?’ ninguém se ofende porque é um trato entre amigos que se respeitam…

- Silêncio! Silêncio, façam o favor de se manterem em silêncio porque temos de dar início aos trabalhos!

Impossível, no entanto, cumprir a ordem do primeiro orador. Há um frenesi delicioso à volta da mesa. Todos os filhos da puta falam ao mesmo tempo e estão mais interessados em ouvir-se do que em ouvir os outros. É natural que assim seja, sendo humanos padecem do pecadilho da vaidade e todos têm muito sobre que se gabar.

- Siiiiilêêêêêncio!
- Está boa, está! Essa do silêncio está impecável, até faz lembrar o secretário Laurentino a dizer que só quer ouvir o barulho dos adeptos e que não quer ouvir outros barulhos!

Os filhos da puta presentes parecem que foram impulsionados por uma mola. Saltam das cadeiras onde mal se tinham sentado e prestam uma grande ovação espontânea ao supra-referido secretário de Estado da Juventude e Desportos. Depois voltam a sentar-se, já mais calmos.

- Ora bem, não haja dúvida que foi muito bem metida!
- Ora bem, o excesso de zelo nunca fez mal a ninguém…
- Vamos lá então falar do que aqui nos trouxe… a Operação Vindima!
- Viva a Operação Vindima! Viva!

Gritam todos os filhos da puta presentes e trocam entre si fraternais apertos de mão e formidáveis palmadas nas costas.

- Ai, tenha lá cuidado com isso que o fato é novinho!
- Mas não lhe custou a comprar…
- E assenta-lhe na perfeição. O meu amigo está uma elegância!
- No que diz respeito à Operação Vindima…
- Está a ser um êxito, nunca pensei que corresse tão bem, parabéns a todos os presentes!
- Calma, muita calma porque, ao contrário do que disse ainda há momento o nosso estimado filho da puta do fundo da mesa, há situações em que o excesso de zelo pode fazer mal…
- Carago, vocês nunca estão satisfeitos! Então se a Operação Vindima foi sonhada para que o Benfica fosse arrumado antes do início da época das vindimas e as coisas já estão como estão, o que é que vocês querem mais?
- Queremos menos! Isto assim começa a dar muito nas vistas, não se pode sonhar tão alto…

Um coro de protestos ressoa pela sala. É o que acontece sempre que funcionários diligentes se vêm repreendidos em nome da diligência.

- Isto é incrível! Os passarinhos já estão a 9 pontos, os lagartos ainda estão vazios e vêm agora dizer-nos que estamos a exagerar! Mas não era este o objectivo da Operação Vindima?
- Faço minhas as palavras do caríssimo filho da puta anterior…
- Faça o favor de não me insultar! Eu não sou caríssimo, sou baratíssimo!
- Ordem na mesa! Silêncio! Eu quero saber quem é que teve a triste ideia de inventar uma homenagem ao desgraçado do árbitro, que é apenas humano, antes do jogo dos coitadinhos em Guimarães!

Fez-se pela primeira vez um silêncio que deu lugar a um vago murmúrio geral. Mas ninguém se acusou. E, mais importante ainda, ninguém acusou ninguém. Até que uma voz apaziguadora se fez ouvir.

- Oh meus filhos da puta, não nos vamos zangar por uma coisa destas!
- E por que não? Se alguém se zangar por causa de uma coisa destas até seria muito bom. Amua um bocadinho em público por razões misteriosas e depois, é o nosso candidato à presidência da Federação Portuguesa de Futebol!
- Isto não é genial! Isto ultrapassa todos os limites da inteligência humana!
- Então, no é que ficamos? Zangamo-nos ou não nos zangamos? No meu entender o nosso objectivo principal neste preciso momento é garantir o sucesso da Operação Vindima! E nem temos que fazer nada, basta sonhar para que as coisas aconteçam.
- Pois, mas isto da homenagem ao árbitro foi um bocado demais. O que é que se faz agora ao rapaz?
- Não se faz nada. Quando ele estiver perto do fim da carreira vai com certeza arbitrar um jogo do Benfica e, como errar é humano, se Deus quiser há-de enganar-se numa decisão e o Benfica há-de ganhar o jogo graças a um penalty que só ele é que descortinou…
- Brilhante, meu estimado filho da puta! E depois fica para a História como um árbitro-lampião!
- E os mouros a estrebuchar!
- E o rapaz não pode ir já no domingo apitar o Benfica-Sporting?
- Arre que você é burro todos os dias! Então não percebe que, por ora, precisamos dos lagartos. A Operação Vindima, para ter êxito, não pode vindimar a Segunda Circular toda ao mesmo tempo. Carago, Lisboa é Lisboa!
- Ainda se o Sporting fosse da ilha da Madeira, como o Marítimo…

Os convivas irrompem em nova manifestação de alegria. Com os seus sotaques abertos do Norte deitam-se a imitar o sotaque fechado das ilhas e o resultado é estrondoso, ainda que imperceptível. (Nota: são precisos actores muito talentosos para representar convenientemente esta cena.)

- Eu só espero que ninguém se lembre de homenagear o rapaz que vindimou o Marítimo no jogo com o Paços de Ferreira!
- É para aprenderem!
- O rapaz já esteve impecável no Benfica-Académica! Merecia uma homenagem.
- Cale-se com porcaria das homenagens, já basta a homenagem ao outro e sempre gostava de saber quem foi o estimado filho da puta que teve a ideia.
- Mas o outro mereceu mesmo ser homenageado. Eu quando o vi a dar o amarelo ao Javi García lembrei-me logo do José prata a fugir atrás dos rapazes todos e nem um amarelo mostrou!
- Para mim foi o melhor momento do jogo! Foi uma satisfação muito grande. Sete cartões amarelos!
- Parecia que estavam com icterícia!
- Genial!
- Por falar em icterícia, no meu entender, o Marítimo há-de ir direitinho para a Liga Orangina. E antes do Natal!
- Por amor de Deus, não se ponham com prazos! Isto da Operação Vindima já está a dar muita bandeira…
- Para o Marítimo havia-se de fazer uma Operação São Martinho, que é a 11 de Novembro.
- E para o Sporting?
- Os lagartos, neste momento, até dão jeito porque ajudam a revolver a terra.
- Isso são as lagartixas!
- E nós não queremos fazer nenhuma horta!
- Mas queremos fazer o Horta!

"E brindam, uma vez mais à agricultura. Desce o pano".
‘A Operação Vindima’ Autor anónimo

in "A Bola"

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